Uma psicofarmacologia própria para a libertação? por Awais Aftab
Tradução livre e sem fins lucrativos por Diego Mansano Fernandes e Tomaz Braganholo Carpentieri, que saiu em agosto de 2023 neste post do Medium. O original foi publicado na revista Asylum e está disponível aqui.
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Do ponto de vista do paciente e sobrevivente psiquiátrico, a prática da psicofarmacologia deve lhe soar insuportável.
As reivindicações de autoridade científica e a retórica da prática baseada em evidências se transformam em uma obrigação médica de tomar os medicamentos prescritos. Seus princípios são administrados de forma condescendente aos pacientes e ao público, por coisas como o uso da enganosa linguagem da correção de “desequilíbrios químicos”. Muitas pessoas ao redor do mundo são medicadas forçosamente, com pouca consideração à carga incapacitante dos efeitos adversos ou a seus desejos e preferências. Mesmo aqueles que tomam os medicamentos de bom grado são mal informados de seus riscos, descobrindo-os apenas anos após o uso, ou quando tentam parar de tomá-los. Nesse contexto, a psicofarmacologia apresenta inclinação tão forte à opressão que pode ser difícil imaginar que as coisas poderiam ser diferentes.
Ao mesmo tempo, a vida de incontáveis pessoas tem sido positivamente transformada. Em plataformas como twitter, estudantes brincam quanto a dedicar suas teses a uma marca específica de antidepressivos que tomam. Medicamentos estimulantes permitem que milhões com problemas de déficit de atenção funcionem e mantenham vidas produtivas. medicamentos de virtualmente todas as classes de psicotrópicos vem sendo apaixonadamente descritas como salvadoras por algumas pessoas que delas se beneficiam. Portanto, parece claro que medicamentos psiquiátricos podem ser uma ferramenta de libertação quando utilizados da forma correta. Se esse for o caso, que princípios podem guiar tal psicofarmacologia libertadora? Como a psicofarmacologia pode servir às necessidades dos Loucos, angustiados e psicologicamente incapacitados?
Como psiquiatra clínico, admito meu viés e minha limitação. No entanto, como um profissional filosoficamente informado, que lida com essas questões cotidianamente, gostaria de oferecer algumas sugestões sobre quais poderiam ser esses princípios.
A natureza dual dos psicotrópicos
Uma psicofarmacologia libertadora faria justiça às experiências diversas de indivíduos que tomam medicação psiquiátrica. Os efeitos que vemos em uma pessoa podem diferir radicalmente dos efeitos em outras pessoas e não podem ser previstos de antemão. Podemos descrever padrões de resposta no nível de grupos mas, para cada indivíduo em particular, estamos no escuro. Algumas pessoas experimentam sintomas de alívio e mesmo remissão de seus problemas, outras não. Algumas não experimentam efeito adverso algum, já outras experimentam efeitos adversos intoleráveis. Algumas experimentam alívio no curto-prazo, mas se deparam com novos problemas no uso prolongado. A natureza dual dos psicotrópicos é evidente na palavra grega phármakon, que pode significar um tanto remédio, como um veneno. A ampla apreciação dessa dualidade deve estar no coração da psicofarmacologia libertadora.
A diversidade de explicações
Sendo a diversidade de experiências e resultados a norma em psicofarmacologia, pode-se dizer que também está implícita uma pluralidade de mecanismos farmacológicos. Nossa compreensão dessas interações deve permitir e explicar tal diversidade. Os efeitos dos medicamentos surgem de uma interação complexa dos efeitos da substância e das características corporais e mentais únicas da pessoa que a toma. Compreender os medicamentos dessa maneira significa não assumir que os medicamentos psiquiátricos estão simplesmente corrigindo uma anormalidade cerebral. Nesse sentido, a psicofarmacologia é semelhante à farmacologia na medicina geral: muitos medicamentos produzem efeitos corporais que aliviam os sintomas, mas não atuam nos processos ou causas da doença. Diuréticos aumentam a quantidade de água que urinamos, e analgésicos interrompem as vias corporais que processam a dor. Embora esses efeitos também ocorram em indivíduos saudáveis, eles são ou benignos ou prejudiciais; mas quando usados na presença de certos sintomas, eles podem produzir alívio. Os efeitos dos medicamentos psiquiátricos podem ser entendidos de forma semelhante. Por exemplo, medicamentos que diminuem a atividade do cérebro podem ajudar no curto prazo com ansiedade grave, e os que reduzem a importância mental (saliência) que atribuímos às sensações podem ajudar com estados angustiantes de psicose. Devemos permanecer abertos e curiosos sobre todas essas possibilidades.
A inclusão de toda experiência e evidência
Infelizmente, a ideia de que algo é “científico” é frequentemente usada como uma ferramenta para descartar a experiência vivida como anedota, como uma desculpa para não levar um fenômeno a sério até que ensaios clínicos randomizados e meta-análises tenham sido realizados. Uma psicofarmacologia libertadora deve ser científica no sentido mais amplo e virtuoso da palavra. Deve ser informada por todas as fontes de evidência — experiências de indivíduos que usam substâncias, a experiência clínica de médicos, as observações das famílias e cuidadores, ensaios clínicos, estudos observacionais, estudos com animais e hipóteses neurocientíficas. Deve usar vários métodos de investigação e estar sujeita a escrutínio aberto. Acredito que entender como os medicamentos funcionam e os efeitos que produzem não é simplesmente uma questão de opinião pessoal. Há respostas certas e erradas, mas chegamos a essas respostas por meio de um processo de inclusão e crítica. Por exemplo, devemos ser capazes de reconhecer a falsa promessa oferecida por intervenções como a homeopatia. Uma farmacologia libertadora deve incluir múltiplas perspectivas e fontes de evidência, dando espaço para a fenomenologia, o significado e a experiência vivida, incluindo-os nos processos de conjecturas, testes empíricos e correção de erros.
Curiosidade e mente abertas
Uma psicofarmacologia libertadora exige mudanças fundamentais na forma como estudamos e compreendemos os compostos farmacológicos. Precisamos ir além das escalas de avaliação de sintomas, que são projetadas mais para o benefício dos pesquisadores e reguladores do que dos pacientes. Uma psicofarmacologia libertadora deve ser centrada nos efeitos, considerando toda a gama de efeitos produzidos pelos medicamentos psiquiátricos e o que isso significa para a pessoa que os toma. Também deve ser centrada nos resultados, observando como os psicotrópicos influenciam não apenas a prevenção de recaídas, mas também a qualidade de vida, a mortalidade, a incapacidade, o emprego e outros resultados importantes para as pessoas. Também deve ser iatrogênica, prestando atenção aos efeitos adversos e malefícios em todas as suas manifestações. No entanto, não deve simplesmente assumir, como muitos psiquiatras e psicólogos críticos fazem, que os medicamentos psiquiátricos são simplesmente tóxicos, sedativos, entorpecentes ou embotantes. Não deve descartar a possibilidade de que os medicamentos psiquiátricos possam agir de outras formas para produzir tanto efeitos positivos quanto negativos.
Humildade e transparência
Uma psicofarmacologia libertadora requer humildade e sabedoria prática. Parte significativa da nossa compreensão de mecanismos psicofarmacológicos é especulativa e hipotética. Há pouco que podemos dizer de forma confiante ou com certeza. Isso significa que temos que abordar a arte e a ciência da psicofarmacologia com humildade e transparência. Devemos manter uma abertura para o desconhecido, o que ainda não foi descoberto, o que está por estudar e, mais importante, uma abertura para aprender com os pacientes.
Empoderamento
Uma psicofarmacologia libertadora deve fornecer ferramentas eficazes para que as pessoas Loucas e angustiadas realizem o que desejam e o que pode lhes dar a oportunidade de florescer e viver bem — seja controle de sintomas, prevenção de recaídas, aprimoramento cognitivo ou psicológico, um afastamento temporário do mundo ou experiências psicodélicas. Se a psicofarmacologia pode ser uma ferramenta de opressão, mas também uma maneira de viver uma vida próspera, ela precisa ser separada dos objetivos de coerção e controle biomédicos. Aplicando um Modelo Social da Deficiência, poderíamos até ver os medicamentos como oferecendo possibilidades para as pessoas Loucas da mesma forma que óculos, cadeiras de rodas e muletas oferecem novas possibilidades para as pessoas com deficiência.
Nossas práticas atuais dependem muito do julgamento dos médicos ou dos tribunais sobre o que seria melhor para os pacientes. Uma psicofarmacologia libertadora apoiaria a vontade e as preferências da pessoa. Isso significaria disponibilizar outras alternativas se as pessoas não quiserem usar medicamentos e dar às pessoas mais escolha em como desejam usar os medicamentos, se assim o desejarem. Diretrizes clínicas e manuais de tratamento podem oferecer uma forma útil de estruturar o tratamento, mas uma psicofarmacologia libertadora reconhece que eles podem se tornar opressivos quando são usados para negar às pessoas a capacidade de adaptar seus planos terapêuticos de maneiras que funcionem melhor para elas, por exemplo usando doses não convencionais ou uso conforme necessário.
Desafiar relações de poder e acesso
Uma psicofarmacologia libertadora estaria atenta ao poder que cerca a prática da psicofarmacologia e ao desequilíbrio que existe entre prescritores e pacientes. Ela desafiaria essas relações de poder e garantiria a presença de freios e contrapesos robustos para tornar a relação mais democrática. Também defenderia um maior acesso à informação e ao conhecimento sobre os medicamentos, como usá-los com segurança e como interrompê-los com segurança também. Também precisa estar ciente do acesso desigual a medicamentos, dentro das nações e em todo o mundo. Por exemplo, os pobres e os não-segurados (que são desproporcionalmente pretos e pardos) são frequentemente condenados a vidas de incapacidade com psicotrópicos sedativos usados para controle comportamental, enquanto os ricos e bem-segurados recebem psicotrópicos que são melhor tolerados e permitem uma melhor qualidade de vida.
Uma forte atitude não-moralizante
Por fim, uma psicofarmacologia libertadora rejeita toda forma de moralização sobre medicamentos e não coage moralmente as pessoas por usá-los ou não. Tomar ou não uma medicação é uma decisão pessoal informada por custos e benefícios. Uma psicofarmacologia libertadora reconhece que não há “boas drogas” e “más drogas”. Não há limite natural entre substâncias usadas de forma recreacional e aquelas usadas medicamente, entre substâncias obtidas nas ruas e substâncias prescritas por médicos. As diferenças são, a princípio, em quão reguladas elas são, seu potencial aditivo e o quão efetivo e seguro pode ser seu uso. Muitas substâncias habitam os dois mundos e outras transitam entre o uso médico, as ruas e vice-versa ao longo do tempo; isso é de se esperar.
Uma psicofarmacologia libertadora não romantiza o sofrimento. Ela rejeita o que tem sido chamado de calvinismo farmacológico, a noção de que “se uma droga te faz sentir bem, ela deve ser moralmente ruim”, a ideia de que a abstinência de substâncias é o ideal máximo e que a recuperação utilizando medicamentos psiquiátricos é inevitavelmente inferior ou um sinal de fraqueza. Uma psicofarmacologia libertadora não descarta as experiências positivas ou negativas das pessoas com medicamentos. Ao invés disso, ela toma os medicamentos como moralmente neutros. O que as torna boas ou ruins é como são utilizadas. Quando utilizadas de forma negativa, podem ser opressivas, mas quando utilizadas com esses princípios em vista, podem até ser libertadoras.
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Awais Aftab é psiquiatra e professor universitário nos EUA e seu trabalho é voltado para questões críticas e filosóficas em psiquiatria. Ele escreve no substack Psychiatry at the Margins. Outras publicações podem ser encontradas no seu site.